As aparências enganam...
De
forma recorrente, e pelos motivos os mais diversos, estou sempre me deparando
com situações de prejulgamento, preconceito, intolerância e radicalismo, que
muito me incomodam. Recentemente, mais uma vez, vi-me diante de uma discussão
que envolvia os quatro temas, o que me levou a resolver escrever. Falarei de
cada um em separado, mas isso não significa que eles não se inter-relacionem.
Ao contrário. Muitas vezes dois ou mais destes temas caminham de mãos dadas.
Ao
prejulgar uma pessoa ou situação, estamos de antemão decidindo se somos a favor
ou contra algo que não conhecemos por completo, temos apenas uma sensação
inicial. Não é uma intuição, esta normalmente correta no que nos transmite, mas
algo construído no plano mental, racional, a partir de fatos esparsos dos quais
tiramos conclusões as mais precipitadas.
Eu
era muito nova quando passamos (eu, meus pais e minha irmã) por uma situação
que nos ensinou, para o resto da vida, a nunca prejulgar nada nem ninguém.
Passávamos o Natal em Gramado, em 1984, e a lição que lá aprendemos foi
extremamente marcante.
Estávamos
hospedados em uma pequena pousada, "Vovó Carolina", pequena, super
familiar, um clima tremendamente agradável. O café da manhã era o momento em
que os hóspedes podiam interagir mais, porque acabava todo mundo se
encontrando. Apesar de cada família sentar numa mesa, acabava virando uma
grande sala de bate-papo, todo mundo conversando com todo mundo.
Na
véspera de Natal, estávamos tomando café quando chegou uma família que não
conhecíamos, haviam chegado no dia anterior. Pai, mãe e uma filha mocinha, de
uns doze anos. Mal cumprimentaram as pessoas que lá estavam. Uma cara fechada,
amarrada, que deixou o clima super estranho. Meu pai chegou a comentar que não
entendia alguém viajar para uma cidade linda como aquela e conseguir ficar de mau
humor. Mas, acabamos o café e saímos a passeio.
Em
todos os lugares que íamos, parece mentira, mas a tal família também ia. Sempre
secos, cara fechada. Não adiantava tentar não reparar neles, porque
esbarrávamos a todo instante. Meu pai, principalmente, já estava incomodado com aquilo. Passou. Fomos para o hotel nos
arrumar para a Noite de Natal, já que íamos passar numa churrascaria da cidade,
de amigos nossos, onde tinha uma comemoração linda, com Terno de Reis e tudo o
mais.
Chegamos
à churrascaria na maior animação, sentamos na mesa que havíamos reservado, bem
de frente para o palco onde eram feitas apresentações de dança. De repente,
quem senta na mesa ao nosso lado? Bingo! A tal família de novo! Parecia até
perseguição! Meu pai ficou "p"! Disse (para nós, claro) que se eles
não queriam comemorar o Natal não deviam ter ido até lá, essas coisas. Mas,
procurou se distrair porque, afinal, se o outro não estava a fim de comemorar, ele
estava, e não ia estragar nossa festa.
À
meia-noite o dono da churrascaria foi ao microfone desejar um feliz Natal a
todos e pedir para que todos se levantassem e cumprimentassem quem estivesse ao
seu lado, numa imensa confraternização. Ora, quem estava ao nosso lado era a
tal família! Mas, levantamos, meu pai meio a contragosto, quando vimos o homem já
ao nosso lado. Desejou-nos um feliz Natal, pedindo desculpas porque sabia não
ter sido boa companhia, mas ele havia acordado naquela manhã com um telefonema
informando que seu pai havia falecido (não lembro em que cidade, era longe à
beça). Não haveria tempo hábil para ele chegar para o enterro, então ele havia
decidido não estragar ainda mais o Natal de sua filha, sacrificando-se e permanecendo
em Gramado até a manhã de Natal, quando pegaria a estrada de volta.
Não
preciso dizer que ficamos todos (e meu pai principalmente, ele sempre falava
isso) nos sentindo minúsculos! Por termos julgado as atitudes de alguém sem
saber o que se passava realmente, por termos nos aborrecido com algo que nada
tinha a ver conosco, deixando até de sermos solidários a alguém que precisava. Valeu
a pena nossa atitude? Agimos certo?
E
quantas e quantas vezes nos deparamos com situação semelhante onde, do alto de
nossa empáfia, sentimo-nos superiores a outros, capazes de julgá-los,
condená-los? Há alguns anos, um exemplo típico foi notícia na mídia: o "Caso
Nardoni". Lembro bem dele porque fui muito criticada à época por minhas opiniões
e por não aceitar fazer parte do "ódio coletivo". Lembrava ainda do
que aconteceu com os donos da Escola Base, que perderam sua dignidade para
depois serem inocentados (e nem por isso tiveram de volta a paz), lembrava do
que havia vivenciado em Gramado. Então não condenei o casal, pura e
simplesmente, esperei o desenrolar do caso para que fosse, afinal, comprovada
sua culpa ou inocência. E como torci por essa segunda!
Mas
muito antes das provas ou das conclusões da polícia, o casal foi condenado pela
mídia e pela população. A incitação ao ódio, cujo ápice foram os fogos de
artifício ao fim do julgamento, foi algo bárbaro, no pior sentido da palavra.
Aquilo me incomodou tanto que até escrevi a respeito. Uma das coisas que mais
me chocava era a comoção gerada com o caso. Não porque não o considerasse
terrível, mas porque na mesma ocasião outros casos tão graves quanto o
"Caso Nardoni" aconteceram e ninguém sequer se deu ao trabalho de
comentar! Quanto mais de se revoltar, de exigir justiça! Por quê? Só porque a
pequena Isabella era uma menina linda, da classe média de uma metrópole? Isso
para mim não é justiça, é discriminação!
Discriminação,
preconceito. Se antes estas palavras já me incomodavam, quando comecei a
participar mais ativamente de grupos relacionados à inclusão de pessoas com
deficiência, e mais especificamente relacionados à síndrome de Down, a coisa
tomou um vulto muito maior. Porque as coisas que comecei a descobrir são tão
tristes, tão chocantes... saber que ainda hoje existem pessoas, e o pior,
médicos, favoráveis ao aborto no caso de se descobrir a deficiência na
gestação, é algo terrível! Saber que crianças e jovens são esquecidos por
professores, quando tentam cursar uma escola regular é, no mínimo, revoltante!
Acabei decidindo cursar Pedagogia, para tentar fazer algo mais.
É
extremamente cruel o preconceito. Graças a ele deixamos de conviver com pessoas
fantásticas, que muito poderiam acrescentar em nossas vidas, pelo simples fato
de “decidirmos” que determinada característica é errada, ou “feia”, ou qualquer
coisa do gênero. É, na verdade, o prejulgamento de uma pessoa, baseado em sua
cor de pele, sua religião, sua aparência, sua orientação sexual, ou qualquer
outra característica, sem a preocupação de conhecer essa pessoa em sua
essência, suas qualidades e defeitos. A diferença é que o preconceito
normalmente se estende a todas as pessoas com aquela característica, não se
restringindo a uma só.
E
então eu descobri que minha sobrinha era dependente química. E descobri que
essa doença (sim, é uma doença) também é cercada de muito preconceito e
discriminação. O dependente químico além de conviver diariamente com uma
batalha imensa, precisa conviver com as pessoas apontando e chamando de
"maconheiro", "drogado", "bêbado", "mau
caráter", "sem vergonha", ou outros adjetivos ainda menos
elogiosos.
O
dependente químico é, muitas vezes, visto como marginal, criminoso. Claro que
muitas vezes ocorre mesmo a ligação com o mundo do crime porque, afinal de
contas, a grande maioria das drogas é ilícita e, portanto, o dependente tem
que, necessariamente buscar criminosos para consegui-las. E as drogas, além de
tudo, afetam o doente, causando a perda de valores básicos, desvios de caráter,
então a linha que separa o legal e o ilegal se torna ainda mais tênue. Mas,
ainda assim, o dependente é um doente que merece respeito, atenção e cuidado.
Ah,
mas ele não se trata porque não quer! Ele usa porque é sem-vergonha! Saiu da
clínica e recaiu, não tem jeito mesmo, não presta! Mas será que os familiares,
os amigos, a sociedade, contribui para essa recuperação? Quando se tem um
hipertenso ou diabético na família, todos se mobilizam de forma a ajudá-los,
mas será que isso também acontece com o dependente químico? Será que a família
elimina as bebidas alcoólicas de casa? Será que os amigos toparão um programa
sem elas? Digo sem medo de errar: na maior parte das vezes a resposta é NÃO. Eu
falei bastante sobre isso em um texto anterior, depois que a Thabata saiu da
clínica, não vou ficar me repetindo.
Recentemente,
graças à discussão em torno da tal lei da "cura gay", o tema da
orientação sexual veio à tona com tudo. Vi muita gente indignada, mas vi também
muitos comentários repletos de preconceito. E isso me incomoda demais, não só
porque sou contra toda e qualquer forma de discriminação, mas porque tenho
amigos e amigas muito queridos que são gays, e são pessoas da melhor qualidade,
que merecem todo o carinho, todo o respeito, toda a consideração do mundo! O
fato de serem gays não significa absolutamente nada no "todo". O que
me importa se a pessoa é gay, se ela é uma pessoa sempre disposta a estender a
mão a quem precisa, a abraçar causas em prol dos mais fracos, se é incapaz de
fazer mal a quem quer que seja? Melhor que fosse intransigente,
egoísta, mesquinho, mas que fosse hetero? A orientação sexual é apenas UMA entre as inúmeras
características da pessoa, mas de forma nenhuma é a maior determinante de seu
caráter!
Mas,
quando entramos neste campo, encontramos, também, a intolerância. De braços
dados com o preconceito, a intolerância é algo terrível. Não é só o "não
aceitar" a diferença, não é só o "não gostar" daquilo, é ainda
mais agressivo e cruel. Ao tratar da orientação sexual vemos pessoas que não
aceitam e nem tocam no assunto, que são capazes de mudar de calçada se
encontrarem um gay, que se tornam até violentos! Pessoas são agredidas nas
ruas, mortas, pelo simples fato de serem gays!
Antigamente
isso era algo discutido apenas em torno da "cor da pele", o
preconceito e a intolerância eram temas tratados quase que exclusivamente ao se
falar das etnias. Ranço trazido pela escravidão, é claro, onde os negros eram
tratados como objetos, ou até menos do que isso. Absurdo pensar que mais de 200
anos após a abolição da escravatura ainda exista tal pensamento, mas ele
existe. Como se a cor de uma pessoa pudesse dizer a sua capacidade! Triste...
E
não é exatamente isso que ocorre com as pessoas com deficiência? Parece que o
simples fato de ter uma deficiência é capaz de determinar o que aquela pessoa
será ou não capaz de fazer. Como se nós tivéssemos o poder de saber o NOSSO
próprio limite, o que dirá dos outros! Eu mesma já me vi fazendo coisas que
jamais imaginaria ser capaz! Como posso falar de outras pessoas então? Se as
oportunidades forem dadas, certamente iremos nos surpreender, porque ninguém é
capaz de adivinhar até onde o outro pode ir!
Quando encontramos a intolerância, encontramos também o radicalismo. Seja
travestido de algo positivo ou negativo, não importa, é perigoso e, muitas
vezes, cruel. Há aqueles que são intolerantes, como falei acima, com gays ou
negros, que são pessoas cheias de preconceito e que simplesmente se acham
melhores do que os outros, mais merecedores do que quer que seja.
Mas
há também aqueles que são intolerantes com os que têm uma religião diferente da
sua, como se só a sua fosse detentora da Verdade, ou aqueles que são
intolerantes com os que não abraçam a mesma causa que eles, como algumas
pessoas que lutam pelos direitos dos animais ou das pessoas com deficiência.
Não
há nada errado em ter uma religião ou defender uma causa, ao contrário! O
errado é achar que aqueles que pensam de forma diferente são pessoas menos
dignas, de pior caráter, desprezíveis mesmo. Unem à intolerância o radicalismo.
E como isso é perigoso! Porque o radicalismo acaba prejulgando as pessoas que
pensam de forma diferente por suas atitudes e escolhas. Pegando o exemplo da
defesa dos direitos dos animais, a pessoa radical, além de combater aqueles que
efetivamente maltratam animais, ainda vão contra os que não os têm como sua
prioridade máxima.
Já
ouvi gente se vangloriar de quanto gastou para ajudar um cachorrinho. Palmas!
Se tem condições para isso, que faça! É louvável! Mas não julgue quem não tem
condições de fazê-lo, ou quem investe aquilo que tem, de repente, para ajudar
uma pessoa com deficiência, ou para comprar quentinhas para pessoas de rua, ou
simplesmente para comprar um sapato novo! Quem conhece a história do outro?
Quem conhece o íntimo do outro? Quem conhece as prioridades, as necessidades do
outro? Julgar e condenar é tão fácil...
E
essa semana acabei entrando em uma discussão (aquela que mencionei no início) no
Facebook, num dos grupos que participo. Foi postada uma mensagem, pedindo para
denunciar um perfil e uma página que estavam postando fotos de pessoas com
síndrome de Down, com conotação preconceituosa. Visitei ambos, denunciei a
página que era, realmente, de péssimo gosto (e não só com referência à síndrome
de Down, diga-se de passagem), mas não encontrei no perfil indicado o tal
preconceito. Estranhei, questionei (para quê!) e fui bombardeada por mensagens
em maiúsculas (o que, na internet, entende-se como gritos - olha o radicalismo
aí), tentando me provar por "A + B" que o rapaz em questão era
preconceituoso.
Voltei
ao tal perfil, afinal eu podia estar errada, revi as fotos que a pessoa postou, sempre com um comentário
agradável, e me dei conta de que, em uma delas, e apenas em uma delas, as
pessoas que visitavam o perfil postavam comentários grosseiros. Ok, mas isso
era motivo para denunciar um perfil, pedindo para o Facebook excluí-lo? Afinal,
o DONO do perfil não agiu, ao menos não era possível afirmar sua intenção, com
preconceito! Se ele errou foi, pura e simplesmente, por não rebater os
comentários grosseiros de quem lhe visitava. Será que era mesmo o caso de
denunciar o rapaz como se fosse ELE o preconceituoso, ou devíamos aproveitar a
oportunidade para orientá-lo? Uma mensagem "inbox" não seria muito
mais proveitosa, muito mais correta? Não daria ao rapaz a oportunidade de rever
sua postura e se tornar uma pessoa melhor?
A cada
argumento que eu apresentava no grupo, o rebate era mais severo, mais radical.
Até que a pessoa que vinha discutindo comigo soltou uma pérola, a fim de provar
que o rapaz merecia ser denunciado: o rapaz era fã do McDaleste, aquele
funkeiro assassinado durante um show recentemente e, por isso, não podia valer
o prato que comia. Oi???
Eu
não gosto de funk, nem ao menos conhecia as músicas do tal McDaleste, mas sei
que as minhas sobrinhas gostavam dele. Thabata ficou sabendo durante a
madrugada do que aconteceu, e quando eu acordei para trabalhar estava chocada,
veio me mostrar os vídeos do show e tudo o mais. Vi filhos de amigas minhas
postando no Facebook cedo, preocupados, querendo confirmar se era verdade que ele havia morrido.
Nenhum desses jovens vale o prato que come então? Todos eles merecem ter o
perfil do Facebook excluído porque são parte da escória da sociedade? Ah,
poupe-me! "Mas espera aí! Sua sobrinha não é aquela que é dependente
química? Então ela certamente está enquadrada, né?" Não! Mil vezes não!
Thabata é dependente química sim, mas Samara não é, e nem os filhos das minhas
amigas. Nada de generalizar! Uma coisa nada tem a ver com a outra!
O
que aconteceu ali foi que, devido a uma denúncia de preconceito, eu me deparei
com alguém intolerante, que se tornou radical ao ser rebatido e, por conta do
seu radicalismo, prejulgou pessoas que nada tinham a ver com a história. Passou
a ser ele o preconceituoso! Um erro justifica o outro?
Não preciso dizer que após rebater tal afirmação, retirei-me da discussão. Não valia mais a pena, perdeu o sentido. Mas eu precisava escrever a respeito. Um desabafo, talvez. Ou, talvez, eu ajude as pessoas a refletirem sobre suas atitudes e, com isso, semeie um pouco de compaixão, tolerância, amor ao próximo, quem sabe? Tomara que sim. Porque tenho visto, com uma frequência assustadora, pessoas se tornarem extremamente agressivas umas com as outras nas redes sociais, e eu sei que isso é reflexo das atitudes fora do mundo virtual. Como aconteceu na discussão que relatei acima, um comentário simples pode deflagrar uma guerra quando alguém não concorda com ele. E sempre vai haver quem não concorda, é de se esperar, já que cada um pensa de um jeito e tem direito a ter suas opiniões! Mas falta respeito pela opinião alheia, falta delicadeza nas respostas, falta AMOR nas relações. Não, não só nas relações. Falta AMOR e ponto. Em todas as situações. É hora de mudar.
Não preciso dizer que após rebater tal afirmação, retirei-me da discussão. Não valia mais a pena, perdeu o sentido. Mas eu precisava escrever a respeito. Um desabafo, talvez. Ou, talvez, eu ajude as pessoas a refletirem sobre suas atitudes e, com isso, semeie um pouco de compaixão, tolerância, amor ao próximo, quem sabe? Tomara que sim. Porque tenho visto, com uma frequência assustadora, pessoas se tornarem extremamente agressivas umas com as outras nas redes sociais, e eu sei que isso é reflexo das atitudes fora do mundo virtual. Como aconteceu na discussão que relatei acima, um comentário simples pode deflagrar uma guerra quando alguém não concorda com ele. E sempre vai haver quem não concorda, é de se esperar, já que cada um pensa de um jeito e tem direito a ter suas opiniões! Mas falta respeito pela opinião alheia, falta delicadeza nas respostas, falta AMOR nas relações. Não, não só nas relações. Falta AMOR e ponto. Em todas as situações. É hora de mudar.
O texto ficou enorme mas, creio, era necessário. Eu volto.
Andréa